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Deputado Sóstenes protocola voto em separado contra o PL3369. Leia na íntegra.

COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS

Projeto de Lei Nº 3369, de 2015

 “Institui o Estatuto das Famílias do Século XXI.”

Autor: Orlando Silva.

Relator: Túlio Gadêlha.

VOTO EM SEPARADO

I – RELATÓRIO

Encontra-se em análise na Comissão de Direitos Humanos e Minorias o Projeto de Lei (PL) nº 3.369, de 2015, de autoria do Deputado Orlando Silva, que institui o Estatuto das Famílias do Século XXI.

O PL nº 3.369/2015 contém 3 artigos. O art. 1º da proposição prevê que ela institui o Estatuto das Famílias do Século XXI, o qual trará os princípios mínimos para a atuação do Poder Público em matéria de relações familiares.

Já o art. 2º prescreve que são reconhecidas como famílias todas as formas de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiem no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que sejam assim consideradas, bem como prescreve que o Poder Público proverá reconhecimento formal e garantirá todos os direitos decorrentes da constituição de famílias na forma definida por esse artigo.

Finalmente, o art. 3º define que a lei proposta terá vigência na data de sua publicação.

A matéria foi distribuída para análise desta Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), e posterior encaminhamento à Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) e à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).

Na CDHM, foi relatada pelo Deputado Túlio Gadelha, que apresentou relatório e voto concluindo pela aprovação do PL nº 3.369, de 2015 com rejeição da emenda nº 1 do Dep. Diego Garcia.

II – VOTO

Primeiramente, é preciso destacar que o art. 2º, caput, do Projeto de Lei n.º 3.369/2015 toca diretamente o tema do conceito de família. Como é de conhecimento geral, a família é a célula básica da sociedade, de modo que este é um conceito fundamental, não apenas para o desenvolvimento da sociedade, mas igualmente, para o desenvolvimento da pessoa de cada um dos seus membros, considerados individualmente.

Assim, deve-se almejar um conceito geral de família que, respeitando as individualidades, seja coerente com o panorama concreto de um povo, vale dizer: que respeite os valores, a cultura, o histórico, as práticas e os costumes do povo brasileiro.

O sociólogo italiano Pierpaolo Donati apresenta interessante e útil conceito ao lembrar que a família é o conjunto de pessoas que compartilham uma confiança mútua total como genitores e como gerados, em um sentido que faz da geratividade algo que não pode ser reduzido a um único aspecto, como a mera transmissão biológica ou o alimento material[1]. Com efeito, o fato de os membros da família coabitarem, viverem sob o mesmo teto, é, também, apenas um dos aspectos, mas não o suficiente, para se classificar um agrupamento de pessoas como família.

A família se distingue de outras modalidades convivências que, a despeito de terem seu reconhecimento social e até poderem encontrar determinada proteção jurídica, não podem ser confundidas com a família, sob pena de atribuir-se excessiva fluidez ao conceito, ocasionando a sua desestruturação, enfraquecimento e inutilidade. Se todas as situações de convivência, como a amizade próxima ou a paixão transitória, puderem ser equiparadas à família, tudo será família (e, ao mesmo tempo, nada será família).

Na perspectiva jurídico-legal, o art. 226 da Constituição da República Federativa do Brasil relaciona três tipos de família: a família baseada no casamento, a família baseada na união estável e a família formada por qualquer dos pais e seus filhos (família monoparental). Ainda, o art. 1.511 do Código Civil apresenta um conceito específico para a família matrimonial, colocando em evidência a profundidade do assunto versado, ao prescrever que “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”.

O art. 2º, caput, do Projeto de Lei ora em análise incorre em diversos equívocos, precisamente por não respeitar as diretrizes fundamentais mencionadas supra, e por pretender alterar por meio de lei ordinária aspectos da disciplina jurídica das famílias que são regulados pelo art. 226 da Carta Magna (incorrendo, portanto, em patente inconstitucionalidade). Além disso, o Projeto de Lei pretende operar alterações na sistemática jurídica da família sem qualquer atenção ao impacto que tais alterações teriam sobre os aspectos pessoais e patrimoniais disciplinados pelos Livros de Direito Família e Direito das Sucessões do Código Civil (Lei nº. 10.404/2002).

Um primeiro grave equívoco se materializa na utilização da expressão “duas ou mais pessoas”. Ora, a sociedade brasileira, assim como ocorre em todos os países ocidentais, adota o modelo de família monogâmica, não admitindo a poligamia. A Constituição Federal prescreve no artigo 226, § 3º, que a união estável é monogâmica, podendo ser constituída somente por duas pessoas. Em determinados países africanos, bem como em países de religião muçulmana, há a aceitação da poligamia, mas seus costumes são muito diferentes dos brasileiros (e as regras sobre Direito Internacional Privado previstas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei nº 4.657/1942 – mandam aplicar as normas brasileiras aos residentes no país, nestes casos, ainda mais por se tratar de situações de ordem pública). Nessa esteira, todas as leis brasileiras têm como premissa a monogamia nas relações de união estável e de casamento, desde as que protegem a família, até as que regulam os mais variados benefícios por dependência conjugal, como as leis da previdência social, de forma que casamentos poligâmicos não têm validade no Brasil, por ofenderem a soberania nacional e as normas de ordem pública.

A esse respeito, vale transcrever parte da ementa do Pedido de Providências n. 0001459-08.2016.2.00.0000, julgado pelo Conselho Nacional de Justiça em 26/06/2018, no qual o citado Conselho, com 13 membros votantes, por 12 votos contra 1, deu procedência a pedido de proibição aos tabelionatos de notas de lavratura de escrituras públicas de “relações poliafetivas” como “uniões estáveis”:

PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. UNIÃO ESTÁVEL POLIAFETIVA. ENTIDADE FAMILIAR. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILDADE. FAMÍLIA. CATEGORIA SOCIOCULTURAL. IMATURIDADE SOCIAL DA UNIÃO POLIAFETIVA COMO FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DE VONTADE. INAPTIDÃO PARA CRIAR ENTE SOCIAL. MONOGAMIA. ELEMENTO ESTRUTURAL DA SOCIEDADE. ESCRITURA PÚBLICA DECLARATÓRIA DE UNIÃO POLIAFETIVA. LAVRATURA. VEDAÇÃO.

1. A Constituição Federal de 1988 assegura à família a especial proteção do Estado, abarcando suas diferentes formas e arranjos e respeitando a diversidade das constituições familiares, sem hierarquizá-las.

2. A família é um fenômeno social e cultural com aspectos antropológico, social e jurídico que refletem a sociedade de seu tempo e lugar. As formas de união afetiva conjugal – tanto as “matrimonializadas” quanto as “não matrimonializadas” – são produto social e cultural, pois são reconhecidas como instituição familiar de acordo com as regras e costumes da sociedade

em que estiverem inseridas.

(…)

7. A diversidade de experiências e a falta de amadurecimento do debate inabilita o “poliafeto” como instituidor de entidade familiar no atual estágio da sociedade e da compreensão jurisprudencial. Uniões formadas por mais de dois cônjuges sofrem forte repulsa social e os poucos casos existentes no país não refletem a posição da sociedade acerca do tema; consequentemente, a situação não representa alteração social hábil a modificar o mundo jurídico.

8. A sociedade brasileira não incorporou a “união poliafetiva” como forma de constituição de família, o que dificulta a concessão de status tão importante a essa modalidade de relacionamento, que ainda carece de maturação. Situações pontuais e casuísticas que ainda não foram submetidas ao necessário amadurecimento no seio da sociedade não possuem aptidão para ser reconhecidas como entidade familiar.

(…)

11. A sociedade brasileira tem a monogamia como elemento estrutural e os tribunais repelem relacionamentos que apresentam paralelismo afetivo, o que limita a autonomia da vontade das partes e veda a lavratura de escritura pública que tenha por objeto a união “poliafetiva”.

12. O fato de os declarantes afirmarem seu comprometimento uns com os outros perante o tabelião não faz surgir nova modalidade familiar e a posse da escritura pública não gera efeitos de Direito de Família para os envolvidos.

13. Pedido de providências julgado procedente”.

Um segundo grave equívoco do art. 2º, caput, se materializa na referência à “socioafetividade” como base para a instituição familiar. Na verdade, a solidariedade é o principal e autêntico princípio fundamental da família, e não o “princípio da afetividade”, ainda mais quando tomado o termo “afetividade” no sentido de mero sentimento ou sentimentalismo, que a tudo justificaria em matéria de Direito de Família (conduzindo a uma visão hedonista da família). Com efeito, o amor é, verdadeiramente, um elemento central da família, mas amor não se confunde com paixão; amor não implica apenas sentimento, mas também entrega, compromisso, comprometimento. Um pretenso princípio da “afetividade” não pode ser utilizado como uma panaceia, apta a legitimar, justificar e alçar qualquer situação de convívio baseada em afetos e paixões ao status de família. É absolutamente inadmissível, por exemplo, que possa ser admitida como família uma união entre um adulto e uma criança de seis anos de idade fundada em um suposto “afeto” que entre eles existiria.

Por outro lado, como terceiro sério equívoco, o Projeto de Lei nº 3.369/2015 pretende indicar princípios mínimos para a atuação do Poder Público em matéria de relações familiares que já são estabelecidos em artigos da Constituição Federal de 1988, quais sejam: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III; art. 227), a liberdade (art. 5º, caput e art. 227), a solidariedade intergeracional (arts. 229 e 230) e a igualdade (arts. 5º, caput; 226, § 3º e §5; e 227 §6º). Deste modo, torna-se inócuo estender o conceito de família por meio de um Estatuto das Famílias do Século XXI que se reveste de inconstitucionalidade.

Entendo que o conceito de família está devidamente reconhecido pela Constituição de 1988, de modo abrangente, colocando-a como base da sociedade. Esta compreensão segue a tradição constitucional do Brasil nos diferentes textos constitucionais anteriormente vigentes.

No mesmo sentido, é descabida a propositura de um Projeto de Lei por meio do qual pretenda o Estado impor princípios mínimos em matéria de relações familiares, uma vez que, no âmbito infraconstitucional, o Código Civil, nos capítulos sobre Direito de Família e Sucessões, dispõe sobre a família, regulamentando o casamento (artigos 1.511 a 1.570); o divórcio e a separação (artigos 1.570 a 1.582); as relações de parentesco (artigos 1.591 a 1.595); a filiação (artigos 1.596 a 1.606); o reconhecimento dos filhos (artigos 1.607 a 1.617); a adoção (artigos 1.618, com remissão para o Estatuto da Criança e do Adolescente); o poder familiar (artigos 1.630 a 1.638), além de contemplar o regime de bens entre os cônjuges (artigos 1.639 a 1.688), a união estável (artigos 1.723 a 1.727) e as sucessões. A proposição não leva em consideração os impactos que certamente teria sobre todos esses dispositivos, ao contrário, despreza tais impactos.

O Estatuto das Famílias do Século XXI, ao pretender reconhecer como famílias todas as formas de união entre duas ou mais pessoas com base apenas no sentimento e na socioafetividade, cria perigosa insegurança jurídica, em função da subjetividade dos sentimentos envolvidos, que podem ou não ser perenes, não servindo, portanto, como elementos aptos para sustentar direitos e deveres jurídicos. Por outro lado, a diluição do conceito de família suporá um notável enfraquecimento de sua estrutura e valor, ocasionando, necessariamente, um forte desequilíbrio social.

O afeto não é o único pressuposto para gerar direitos e deveres familiares, ainda que tenha a sua relevância. A constituição de uma família envolve um compromisso, e por essa razão é assegurada pelo Direito e protegida pelo Estado, devido às sérias consequências envolvidas. De rigor, o afeto, enquanto elemento interno a cada pessoa, não é requisitado pelo Direito para a constituição jurídica do casamento, da união estável e da filiação.

Não há, assim, como se admitir a aprovação da proposição ora em tela, por todos os motivos já mencionados: o Projeto realiza ampliação extremamente ampla e genérica do conceito de família, tornando-o fluído e inútil; o Projeto não parte da premissa de aderência à realidade brasileira, chancelando uniões poligâmicas entre nós, o que é inadmissível, e se baseando somente num conceito de “socioafetividade” que não exprime a complexidade e integralidade do fenômeno familiar; o projeto é fonte de insegurança jurídica, por não prever os enormes impactos que traria sobre o restante da legislação de Direito de Família, Direito das Sucessões, Direito Previdenciário, entre outros exemplos.

Diante do exposto, considero que, além da inconstitucionalidade da proposição, a mesma não atende, no mérito, ao melhor interesse público concernente às normas que garantem direitos, sendo fonte de insegurança jurídica, de modo que voto pela rejeição do Projeto de Lei da Câmara n. 3.369, de 2015.

Sala das Comissões,          de agosto de 2019.

Deputado SÓSTENES CAVALCANTE
Democratas/RJ


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